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"Pais e mães: peguem mais leve com os filhos e consigo mesmos", diz o pediatra Daniel Becker

Em entrevista, médico aborda aspectos positivos da convivência imposta às famílias, faz sugestões para o ensino digital oferecido pelas escolas e torce pela transformação da sociedade

Que pai ou mãe, nestes tempos de distanciamento social provocado pela pandemia de coronavírus, ainda não fraquejou diante dos filhos? Quem consegue estar 100% positivo, quem nunca perdeu a paciência, gritou de raiva, demonstrou medo ou ansiedade? Com mais de 30 anos de experiência em consultório no Rio, atuação como conferencista internacional sobre temas como saúde da criança e da família e relação entre pais e filhos e colaborações para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e os Médicos Sem Fronteiras, o pediatra e sanitarista Daniel Becker traz algumas palavras de conforto.

 

— É muito importante que agora pais e mães se tolerem e aceitem o seu não dar conta de tudo. Eles não têm um minuto de folga, tendo de cuidar dos filhos, da casa, do trabalho, e sob circunstâncias estressantes — diz Becker, em entrevista via áudios de WhatsApp, de sua casa no Rio.

 
 

De lá, o médico só sai para trabalhar duas vezes por semana, "para casos absolutamente necessários, que precisam ser examinados". Aos 61 anos, Becker está afastado há mais de um mês de sua namorada e de sua filha. Vive isolado com seu filho e sua cachorrinha, com quem aproveita para fazer caminhadas em ruas desertas, à noite. 

Na entrevista a seguir, o pediatra — que conta com 120 mil seguidores no Instagram (@pediatriaintegralbr) — fala sobre os aspectos positivos da convivência forçada ("Estamos produzindo poderosas memórias afetivas"), sobre a importância do brincar ("É a linguagem e a cura para as angústias da infância"), sobre o que as escolas deveriam estar oferecendo no ensino a distância ("Uma espécie de recreio seria essencial, para as crianças interagirem sem a presença do professor") e sobre como estamos diante da possibilidade de escolher um futuro melhor para nossos filhos:

— A gente não pode sair desta crise igual a como entrou. Se a gente não refletir um pouco sobre nosso modelo de vida, sobre 40 anos de neoliberalismo, que estava fadando à extinção o mundo, consumindo seus recursos, roubando o futuro das nossas crianças, a gente é burra. A gente merece que o vírus nos leve a todos. "Valeu, coronavírus, mandou bem". 

Um dos efeitos positivos, tomara, do distanciamento social é que pais estão redescobrindo seus filhos, e filhos, redescobrindo seus pais, não?

Sim, há uma redescoberta, um nascimento de uma intimidade que não havia entre pais e filhos. Há muitas famílias para quem isso é completamente novo. Pais que não conheciam suas crianças, porque as depositavam em creches durante 10, 12 horas seguidas, por necessidade ou conveniência, ou que terceirizavam os cuidados com babás e avós. E que estão sendo forçados a conviver neste momento anômalo e estranho. Isso tem um lado muito bom, um peso positivo para crianças, porque o vínculo com os pais é fundamental para o desenvolvimento delas. Então, para os pais, exercer esse papel de forma tão intensa e permanente é muito bom. Caso esse convívio seja pacífico e harmônico. O que está acontecendo é que, como esse é um convívio forçado, para o qual as pessoas não estavam preparadas, e como está sendo acompanhado por uma série de dificuldades, porque as pessoas estão tendo de cuidar da casa, de filho, da comida, de trabalhar em home office ou fora de casa ainda, esse convívio é muito tenso e estressante. Os pais estão simplesmente malucos, não têm um minuto de folga. Perderam espaços importantes. Para muitas mães sozinhas, era maravilhoso o momento da escola, quando podiam ser elas mesmas, relaxar, trabalhar, fazer coisas para elas. Todo indivíduo deveria ter direito à solidão, ao descanso, às atividades laborais, ao entretenimento solo, ver uma série, tomar um café, conversar com uma amiga, ler. Agora, milhares de tarefas estão se impondo, e muitos pais estão sem ajuda alguma, inclusive no puerpério, que antes tinha ajuda da avó ou da empregada. Isso também se reflete na relação do casal e com os filhos. A raiva extrapola, há arroubos de gritaria. Com razão. Não acho que a gente deva culpar ninguém. É muito importante que agora pais e mães se tolerem e aceitem o seu não dar conta de tudo. E que as pessoas que têm o privilégio de um parceiro ou parceira consigam dividir as tarefas e que possam ter seus momentos de descanso, seu trabalho, possam cuidar do seu corpo e da sua mente também. Atividade física pode ser feita brincando com a criança. Seu filho pode ser o peso na musculação! Pode ser quem vai correr com você. As atividades chatas podem ser divididas com as crianças. Na cozinha, a menorzinha pode lavar o repolho, a mais velha pode cortar algum legume.

 

Quando as crianças se lembrarem deste momento, vão lembrar da dancinha na sala, de cozinhas e comer juntos três vezes ao dia, de contar histórias, de sentir saudade junto do vô e da vó.

 

 

O senhor sempre falou da importância da convivência. Ela tem peso mesmo quando imposta?
Este período vai repercutir em muito mais fluxo na relação, vai gerar memória afetiva legal no futuro. Quando a gente se lembrar deste momento, vai lembrar da dancinha na sala, de cozinhar e comer juntos três vezes por dia, de contar histórias, de sentir saudade juntos do vovô e da vovó, de sentir falta do passeio no parque ou na praia. A gente vai sofrer juntos um pouco, vai chorar juntos um pouquinho. Gosto muito do Erich Fromm (psicanalista alemão, 1900-1980) quando ele fala que o amor brota do cuidado. Quando a gente cuida de alguém, desenvolve essa relação amorosa e se torna potente. É fundamental, contudo, não romantizar demais essa convivência, porque ela tem uma forte carga de estresse e precisa de válvula de escape. Para quem está sozinho é muito difícil, há muitas mães assim no país, especialmente nas classes menos abastadas, vítimas do fenômeno comum do aborto masculino: são abandonadas com dois ou três filhos. Essas pessoas precisam muito de ajuda neste momento, e não é só financeira, é da comunidade. Hoje estava ouvindo o depoimento de uma mãe que tem um filho de cinco anos e um de 10 que é autista. Sozinha, imagina? Ela não consegue dar conta de nada, praticamente.

Um dos problemas das famílias atuais, segundo o senhor, é que confinamos as crianças em um mundo de quatro paredes. Mas agora mesmo esse mundo está limitado: tem a casa, mas não tem o shopping nem a agenda lotada de aulinhas disso e daquilo. Pode nascer algo bom daí?
De uma forma mais ampla, o coronavírus nos permitiu colocar um ponto de interrogação sobre que tipo de mundo a gente estava criando. Um mundo de competição, hiperconsumo, individualismo, materialismo e futilidade, de quem pode, de desigualdades extremas. A gente está se confrontando, de repente, com o valor disso tudo. O que isso está causando e como se conecta com o que estamos vivendo agora. Podemos olhar para nosso sistema de vida, esses 40 anos de neoliberalismo, e começar a questionar e a mudar. A gente não pode sair desta crise igual a como entrou. Mas eu tenho medo, na verdade, de que a gente volte a ser o que era. É perfeitamente possível, afinal de contas o sistema que a gente criou é muito poderoso, tem muitas ramificações, muita gente extremamente poderosa mexendo os pauzinhos lá em cima. Mas se a gente não melhorar depois de um momento como esse, se a gente não refletir um pouco sobre nosso modelo de vida, que estava fadando à extinção o mundo, consumindo seus recursos, roubando o futuro das nossas crianças, a gente é burra. A gente merece que o vírus nos leve a todos. "Valeu, coronavírus, mandou bem". Se a gente voltar para como estávamos vivendo, daqui a alguns anos haveria outra situação catastrófica, seja climática, seja o problema das superbactérias, em que novamente seríamos colocados em xeque por ficarmos enfiando nossos filhos em coaching, em múltiplas aulas, em modismos, em conteúdos inapropriados, em adultizações, em escolas conteudistas voltadas para matemática e o Enem, sem nenhuma ênfase em humanas, teatro, emoções, relacionamentos, cidadania, desigualdade, justiça social, em capacidade de autocuidado e de cuidar do outro, empatia. Cadê isso tudo nos nossos currículos? Será que não é hora de as escolas olharem para essas questões e fazer uma pequena virada? Se a gente ficar só reclamando que não tem as aulinhas e os shoppings para torná-los competitivos e entreter nossos filhos, nós vamos voltar para o mundo em que estávamos, e isso seria muito triste. Não vou dizer que os dinossauros voltaram, que agora teremos um mundo sem poluição, mas cabe a nós tentarmos fazer da pandemia um turning point. Acho que vai ser difícil, não sou naive, otimista, um Cândido de Voltaire para achar que tudo vai dar certo. Mas quem sabe pode ser um ponto de inflexão que aponte na direção de uma mudança.

 

A aula online deveria ser dirigida para uma coisa de que as crianças estão sentindo falta, que é rever os amigos, brincar, interagir, ter um espaço sem os pais e também sem os professores. Poderia haver uma espécie de recreio, que é uma parte essencial na vida escolar.

 

 

Por falar em escolas: as crianças mal tinham começado o ano letivo quando as aulas foram suspensas. O senhor se arrisca a dizer o quanto a aprendizagem será prejudicada? Que conselhos daria para os pais sem traquejo de professor?
Existe uma situação que é de exceção, que pegou todo mundo de surpresa. Isso por um lado está disparando tendências interessantes, escolas investindo e aprendendo o ensino a distância. Por outro, está tudo sendo improvisado. Mãe dizendo: "Meu Deus, eu tenho de ensinar meu filho o que é uma mitocôndria!". Mas ela não tem a menor ideia, esqueceu ou nunca soube. Se houvesse preparação, as crianças poderiam estar no computador e receberiam um link para estudar a mitocôndria em um fabuloso modelo em 3D. Mas a gente não teve tempo para se preparar. Temos de dar uma pausa, respirar e dizer: não vai ser maravilhoso. As escolas têm de ver que não vão conseguir passar os conteúdos do jeito que gostariam, pelo menos não neste semestre ou até no ano. Imagine um casal em home office com dois ou três filhos de diferentes idades, nem tem computador para todo mundo. É um momento em que as escolas poderiam, como eu disse, rever a postura conteudista. Ficamos ali nas mitocôndrias, que são importantes, mas talvez não sejam tão úteis quanto falar de trânsito, de internet, de ambiente, de álcool e de drogas, de educação sexual... A função da escola também não é dar mais trabalho para os pais. Eles já estão sobrecarregados, não dá para passar tarefas que vão explodir no colo deles. A aula online deveria ser dirigida para uma coisa de que as crianças estão sentindo falta, que é rever os amigos, brincar, interagir, ter um espaço sem os pais e também sem os professores. Poderia haver uma espécie de recreio, que é uma parte essencial na vida escolar. É claro que o ensino será prejudicado, mas isso não é desastre. Uma hora vai ser compensado. 

Quando conversou comigo no ano passado, o senhor enfatizou que crianças precisam estar próximas da natureza, do verde, de parques e praças. Agora, estão privadas disso. Podem se "desacostumar" ou, pelo contrário, podem estar se dando conta da falta que o verde faz?
Tenho a mais do que absoluta certeza de que está todo mundo sentindo falta. Não só as crianças. Está sendo uma lição. Em geral, a gente só valoriza o que não tem, só valoriza a saúde quando está doente, uma amizade quando essa pessoa desaparece etc. É o que os ingleses chamam de taken for granted, tomado por garantido. Posso descer na pracinha quando quiser, mas agora que a gente não pode, vamos valorizar mais. 

O senhor também falou que criança precisa de tempo livre para brincar. Agora é o que mais tem, não? Ou as condições são tão estressantes que impedem a criatividade?
Brincar nunca atrapalha. Nunca é demais. A criança pode transformar qualquer dificuldade em brincadeira. É o que lhe traz conforto, segurança, saúde emocional. O problema não é o tempo, é quando os pais não fazem uma proposição, não oferecem elementos e materiais. Nem precisa ser brinquedo mesmo. Uma xícara de plástico e uma colher a criança já cria sua fantasia. 

O YouTube e os smartphones, que, de modo geral, o senhor critica, hoje se tornaram, bem ou mal, aliados para passar o tempo. É hora de os pais finalmente assistirem juntos e conversarem sobre o que os filhos estão vendo ou jogando, né?
São aliadas agora, a gente tem de relaxar um pouco o controle. As pessoas que são mais rigorosas têm razão em exercer esse controle, mas, neste momento, tudo tem de ser mais leve, a gente tem de ter mais compreensão com as crianças e conosco também. Se agirmos como policiais fica mais cansativo ainda. Então, deixa um pouco mais. Cuidado com o abuso, como deixar uma criança de dois anos ficar três horas diante de uma tela, o que não tem o menor sentido. Ofereça alternativas, chame para brincar, fazer atividade física, pular, todo mundo engatinhando, todo mundo dançando, eles vão adorar. Isso ameniza a atratividade das telas. E, se for usar as telas, procure conteúdos de qualidade. Melhor assistir a Mulan ou Mathilda, dois filmes bacanas, do que uma porcaria de youtuber falando de consumo e fazendo propaganda, ou deixar criança assistindo ao BBB. Não faltam escolhas. Vamos semear arte, história, simbolismo, metáforas, belas narrativas, folclore. Vamos assistir juntos, jogar juntos, comentar, desenvolver o olhar crítico.

Juntos quase o tempo todo e por tanto tempo, é provável que os pais estejam mais tentados a trocar o "não" habitual pelo "sim". É uma situação para ceder mais?
De novo, a gente tem de pegar leve, tentar estabelecer uma rotina livre, que tenha atividades, mas com muita tolerância, perdão e flexibilidade. Vamos escolher melhor as batalhas, para não ter de viver em conflito o tempo todo.

O senhor teria alguma palavra de alento para os pais, alguma recomendação para tornar os dias mais tranquilos?
É preciso manter a esperança de que a gente vai sair dessa situação. Com perdas, com dores, mas vamos sair. Vamos ser fortalecidos como sociedade e indivíduo, espero. Vai ser muito difícil economicamente, mas é a hora em que a sociedade precisa ser solidária para ajudar quem mais precisa. As perdas aos pouquinhos vamos recuperando, se Deus quiser. A vida não vai voltar ao normal tão cedo, tem muita coisa esquisita pela frente, estaremos mais distantes, usando máscara, sem retomar atividades habituais, mas quem sabe surge uma vacina, e quem sabe estamos no início de um mundo um pouco melhor, combatendo a autodestruição.

Precisamos evitar explosões, afinal, nós que somos adultos, mas, por outro lado, é até muito bom para as crianças saberem que os pais podem errar, fazer atos indevidos, portanto, são humanos.

 

 

É possível especular o impacto desse período que estamos vivendo na formação das crianças e dos adolescentes?
Para os adultos, é um momento de dor, de medo, de ansiedade, de briga política, de muita angústia em razão de quem nós éramos e não somos mais, do que podíamos fazer e agora não podemos mais, de pressão no trabalho, de receio de perder o emprego, de perdas econômicas, de caos social, de ficar doente e não ter hospital... Vamos nos lembrar disso como um período difícil. Mas também vamos nos lembrar como um período em que fomos resilientes, em que nos conseguimos sobreviver e sair, espero, melhores como sociedade, se a gente for solidário, se a gente for amoroso, se a gente manter a nossa fidelidade a quarentena para evitar que mais pessoas fiquem sem assistência médica, que mais profissionais de saúde se sacrifiquem, que mais pessoas morram. É fundamental a gente ter uma atitude correta e ética para que a gente possa sair deste momento orgulhosos e mais fortes. Para crianças, por sua vez, vai ser um tempo de muita memória afetiva, de convivência inédita, profunda e intensa com os pais, de conhecê-los melhor, de ter intimidade, de poder brincar. Brincadeira é a grande linguagem, a grande saída, a grande cura para todos as angústias e todos os males da infância. Se a gente conseguir brincar com nossos filhos, vamos desenvolver memórias afetivas muito potentes, preparando-os melhor para a vida. E mesmo que eles vivam alguns maus momentos, vejam um pai ou uma mãe chorando, sofram com um ataque de raiva, um grito, ver o pai e a mãe mostrando a sua vulnerabilidade também tem um aspecto positivo. A gente assusta as crianças no primeiro momento, mas podemos pedir desculpas, conversar com elas depois da crise, falar dos nossos sentimentos, explicar que estamos cansados, com medo, ansiosos, mas que vai passar, vai melhorar lá na frente. Se esses estresses periódicos são compensados por carinho e afeto, engrossamos a casca dos nossos filhos, as crianças aprendem a lidar com as crises e entendem que as coisas envolvem sofrimento também. Precisamos evitar explosões, afinal, nós que somos adultos, mas, por outro lado, é até muito bom para as crianças saberem que os pais podem errar, fazer atos indevidos, portanto, são humanos.

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